quinta-feira, 11 de abril de 2013

Delicadeza. É o que se vê ao folhear cada página do livro Balés Ilustrados: Giselle, concebido e integralmente desenhado por Regina Kotaka.

Revista Ideias
por Marisa Villela
 
 
Regina Kotaka escolheu o bailado Giselle para seu primeiro livro ilustrado porque foi um dos balés clássicos que dançou no início da carreira de bailarina, e que é, até hoje, um dos seus favoritos. Regina conta que “Giselle” marcou época na história da dança e foi o apogeu do Romantismo. É um dos poucos que têm por escrito a coreografia. “É importante para as pessoas, principalmente para crianças, saber o que está acontecendo em cada cena. E o texto auxilia a contar a historinha.” Regina explica a importância de “Giselle” no universo da dança clássica. “É um balé de 1841, criado em Paris por Theophile Goutier, que, além de poeta e escritor, era crítico de dança. Foi o primeiro balé que todo o corpo de baile dançou nas pontas. Antes disso, no balé La Sylphide só a primeira bailarina era quem dançava nas pontas. Aí a Ópera de Paris preparou durante dez anos toda uma geração de bailarinas para que pudesse, não só a bailarina principal, mas todo o corpo de baile também dançar nas pontas. E Goutier, que era apaixonado pela bailarina Carlota Grisi,escreveu o libreto para que ela pudesse protagonizar.”
Em formato de histórias em quadrinhos, o livro conta o triângulo amoroso entre a frágil aldeã Giselle que se apaixona pelo príncipe Albrecht, disfarçado de lenhador, e seu rival Hilarion, o guarda-caça que o desmascara. Mesmo sendo um conto trágico, de rivalidades, lutas, vingança e morte, a sensibilidade de Regina Kotaka nos desenhos, na escolha das cores, cenários, figurinos e na precisão dos movimentos dos personagens fazem do livro Giselle um primor de graça e elegância.
Foi concebido para crianças, mas os adultos se deliciam com a riqueza de detalhes. E deu muito trabalho à bailarina, que se diz autodidata. “As ilustrações e os ambientes, fiz tudo. É bem artesanal cada desenhinho, por exemplo, no Segundo Ato, eu demorava fazendo bordadinhos no gibão do príncipe. E minha mãe disse: ‘Rê, alguém vai ver esse bordado? Eu disse: eu estou vendo!’. No Primeiro Ato tem a duquesa, que é a outra namorada do príncipe, todo o vestido dela é bordado, desenhado minuciosamente. Acho que é o detalhe que faz o refinamento.”
Cada cena do livro é uma reprodução fiel e irrepreensível da coreografia dançada nos palcos. Regina conta que, por muitas vezes, parava de desenhar e dançava. “Na minha cabeça estava cantarolando a música da cena. E muitas posições que eu precisava desenhar, era necessário testar no meu corpo e sentir exatamente como seria o movimento mais adequado. Você sente no seu corpo visualmente o que é o melhor ali, naquele momento da história.”
Bailarina de primeira grandeza, Regina Kotaka sabe bem o que significa, em uma obra de balé, a precisão de gestos, da colocação dos pés, dos joelhos e das mãos. E o livro é desenhado com toda acuidade.“Nós bailarinos somos muito críticos quanto a isso. Um artista plástico, por mais fantástico que seja, se ele não tiver um convívio mais próximo com a dança, não sai do jeito que o bailarino faz no palco. E não é porque o desenho é mal feito, não é porque não é bonito, mas, para a nossa estética da dança, aquilo não funciona.E a primeira coisa que um bailarino olha é quando não está certo. Esse balé Giselle é um balé do Romantismo, então ele tem um estilo de postura corporal da bailarina, diferente do balé atual. Claro que têm algumas posições que eu exagero um pouco mais nas linhas, nas condições físicas da bailarina, porque a gente sabe a limitação do corpo, sabe até onde se pode ir, onde que o movimento é viável e possível, porque senão é contorcionismo e não é dança. Eu, que já dancei bastante tempo e conheço a técnica da dança clássica, ousei o máximo nas posturas dos bailarinos.”
 
Mudança de rumo
Por causa de um desgaste nas articulações do pé, danificado pelos muitos anos de dança com sapatilhas de ponta, Regina Kotaka precisou parar temporariamente de dançar. E conta que ficou apreensiva quanto ao seu futuro profissional. “Eu pensei: e agora? Que faz um bailarino quando não está dançando? Eu não sou coreógrafa, fiz alguns trabalhos, sou mais a massinha do pão do que o padeiro.”
Decidiu ocupar o tempo e matriculou-se na Faculdade de Dança da FAP – Faculdade de Artes do Paraná, e também iniciou a carreira de ilustradora fazendo estampas de dança em camisetas. “E se dava para fazer uma cena de balé para camiseta, muitas cenas dariam para fazer um livro. Só não imaginava que desse a trabalheira que foi”, diz rindo. “E foi lá na faculdade que eu percebi o quanto que a gente precisa de material didático de dança. Tem muito pouco material produzido aqui no Brasil, e menos ainda traduzido para português. Então, para as pesquisas em dança, não tem quase nada.”
Quando concebeu o livro, Regina conta que ainda não tinha muito clara a sequência dos quadrinhos. “Fui desenhando as cenas mais ou menos como eu achava que precisava para contar a história e bastante coisa eu tive que desprezar. Também pegava um vídeo, parava, congelava uma cena que eu achava que era legal. Assisti vários vídeos para conseguir montar toda a sequência, uma história que não ficasse muito chata, repetitiva, tem muita cena que se repete na dança, não dá para você ficar passando tudo. Teve um monte de filtro...”
 
Apoio familiar
A família deu a Regina Kotaka todo o apoio nessa nova etapa profissional. O marido arquiteto deu-lhe o suporte e orientação para trabalhar com programas de computador específicos de desenho. A filha jornalista revisou os textos e as legendas. Da mãe recebeu de presente uma mesa digitalizadora. “A mesa parece esse fogão de vidro temperado preto. Aí tem uma canetinha, tem uns programas que são específicos, você regula a densidade, o aperto da mão, você pode escolher se vai desenhar com lápis, com tinta, com nanquim, esferográfica. Eu que não sou desenhista, sou autodidata, escolhi o lápis, e outro lado é borracha...vai ficando salvo tudo no computador e eu vou arquivando cada cena. Porque no começo eu desenhava no papel, escaneava, passava para o computador, ficava tudo borrado, perdia um tempão limpando antes de começar colorir, porque qualquer pontinha de lápis fica lá digitalizado, o defeito do papel, tudo aparece. Quando eu me formei na faculdade e minha mãe me deu a mesa digitalizadora, eu desenhei tudo de novo na mesa e ficou mais claro, mais limpo.”
E do pai, além do entusiasmo, Regina ganhou a influência da cultura japonesa que está presente nos olhos e na concepção dos bailarinos da história em quadrinhos. “É que no começo eu achei que o manguá era uma linguagem mais fácil, mais simples para eu desenhar. Meu pai é japonês, eu tenho muita herança da cultura japonesa, e o meu trabalho tem traço oriental. Os olhos de mangá são bem presentes, um pouco da proporção do corpo também está lá, tem bastante influência do mangá. Quando eu iniciei, comprei revistinhas para poder ter uma referência para desenhar.”
 
Crianças
Por ocasião dos estágios exigidos no curso de Dança, Regina percebeu as dificuldades dos professores de Arte das escolas públicas para conseguir material didático de dança. E foi pensando nesse público que decidiu fazer o livro. “Para mim está claro que uma principiante vai seguir a sequência correta da coreografia. É o passo a passo do que seriam as posições do corpo da bailarina. Por exemplo, o figurino desse balé clássico Giselle não é com a saia acima do joelho. Mas, em alguns momentos, eu usei como artifício para mostrar os joelhos para a criança entender como é a posição da perna. O joelho mostra qual é a perna direita e qual a esquerda, senão, essas posições que são dos pés virados para fora, em muitos momentos não conseguiria perceber se era a perna direita ou a esquerda, então ficava uma coisa bem bizarra. Mas foi só durante o tempo que eu fui desenhando que percebi que, se eu mostrasse mais vezes a posição do joelho, ficaria mais compreensível.”
 
Dicionário Ilustrado
Depois do ineditismo e sucesso do livro Balés Ilustrados: Giselle, Regina Kotaka ensaia um projeto ainda mais ousado: publicar um Dicionário Ilustrado de Terminologia de Dança Clássica. “Será mais ou menos no mesmo espírito de desenho, só que vai ser dicionário. A dança clássica tem terminologia própria e cada passo leva um nome. Claro, embora a professora de dança explique e se apoie em notas de aula, há necessidade de ter os cuidados em cada movimento, cada evolução, o movimento que você acha que existe mas que não existe. O professor que não fez uma faculdade de dança terá um dicionário para saber o que pode e que não pode fazer. Por exemplo, um giro en dehors é para fora. Tem gente que dá aula e não sabe a terminologia. Num giro en dehors é o pé que gira, então, qual que vai ser o pé de base e qual que será o de ação? Parece uma besteirinha, mas daí você vê como falta esse material didático. É importante saber como pode terminar esses giros, se eles são com as duas pernas no chão ou com uma perna no ar, se é uma perna antes e outra depois, então tudo isso faz parte do ensino da dança clássica. O dicionário será ilustrado para se ter uma noção real do movimento. E já que eu consigo desenhar, é muito mais fácil visualizar para entender. Vai ser, vamos dizer, um pouco menos infantil, vai ser material de consulta, mas não quer dizer que a criança não precise também, não é? Ela vai ter aula de balé e fazer o plié, que é uma flexão de pé. Mas daí tem a posição de en dehors que é para fora, o joelhinho tem que estar alinhado, não pode estar caidinho para dentro para evitar lesões, tem uma porção de coisas que você tem que tomar cuidado desde o começo do aprendizado. Uma delas é o alinhamento, o equilíbrio do corpo, da coluna, cabeça, ombro, e no desenho pode colocar uma flechinha indicando. Estou meio empacada porque ainda não sei muito bem como vou explicar todos esses detalhes, mas já estou fazendo os desenhos.”
A delicadeza está presente no dançar, e também no falar, no sorriso e no olhar, no trato com as pessoas e na vida profissional de Regina Kotaka. Quem a viu dançando, por exemplo, a Fada de Açúcar, do balé O Quebra Nozes pensa que ela é feita mesmo de açúcar ou de outro material quebradiço, tal a leveza, a graça, a suavidade e a beleza de seu bailado. Diz que é romântica, muito romântica e desenha o que mais se aproxima do seu gosto de balé.  Para dar sequência à coleção de livros de balé ilustrado, já está pensando em desenhar a obra A Bela Adormecida. “Só que é um balé em quatro atos, então penso em fazer dois livros, 1º e 2º atos em um, e 3º e 4º em outro. Outro que eu gostei de dançar como intérprete foi o Lago dos Cisnes. O personagem, apesar de ser um cisne, tem muitos conflitos de sentimentos, quer estar lá, apaixonada, não pode estar, sabe aquelas coisas românticas? Eu acho legal despertar essa visão romântica nas crianças. Porque a criança que começa dança ainda começa com essa visão de princesa, contos de fadas, uma coisa irreal, imaterial. A bailarina parece que é impalpável, que ela está em outro patamar diferente do terreno, longe do nosso dia a dia. E é essa magia que eu quero preservar e passar para o universo da criança.”
 
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Currículo oficial de Regina Kotaka
 
Regina Kotaka é bailarina, brasileira, natural de Curitiba, graduada em Licenciatura e Bacharelado em Dança pela Faculdade de Artes do Paraná e formada pela Escola de Danças do Teatro Guaíra de Curitiba, fez a complementação de seus estudos no Centro Internacional de Dança Rosella Higthower, em Cannes, na França. Começou sua carreira profissional no Ballet Guaíra. Foi contratada como solista pelo Freiburgstatheater na Alemanha. Em 1984 integra a Companhia Nacional de Bailados, Lisboa, sob a direção da Armando Jorge, onde dançou papéis de destaque em coreografias de G. Balanchine, S. Lifar, K. Jooss e A. Bournonville. Regressa ao Ballet Guaíra e passa a ocupar a posição de bailarina principal desde 1989 até hoje. Ao seu repertório pertencem os principais papéis entre obras de clássico e de contemporâneo, com destaque para a Fada do Açúcar (O Quebra Nozes), a princesa Aurora (A Bela Adormecida), Lili Braun e Beatriz (O Grande Circo Místico) e nos bailados Canções de Wesendonk, Copelius, o Mago, Estância, Presenças, Caminhada, O Segundo Sopro, Trânsito, Romeu e Julieta entre outros. Tem participado em Festivais de Dança como bailarina convidada, professora e jurada.

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